Por Élcio Braga
O Globo
Dira Paes e Pureza Loiola em Marabá, onde foram feitas as filmagens. |
A dor de dente era tanta que, naquele
dia, o trabalhador febril não conseguiu levantar da rede, pegar a enxada e
caminhar até a plantação. A falta foi punida sem dó. O capataz amarrou o
adoentado a uma árvore e, com alicate, arrancou todos os seus dentes. Esta e
outras histórias estarrecedoras foram reveladas por Pureza Lopes Loyola em sua
busca pelo filho por fazendas que usavam trabalho escravo, no Norte do Brasil.
A longa jornada, quase sempre a pé, resultou em centenas de trabalhadores rurais
libertados e indenizados, um prêmio internacional, além do aguardado reencontro
familiar.
Mas só agora, mais de 25 anos depois, Pureza, 75, acredita
que a profecia, feita em uma igreja evangélica antes até do início da
peregrinação, vai se realizar. Ela compartilhou a sensação com a atriz Dira
Paes, que a interpreta em longa-metragem inspirado em sua história. As duas se
encontraram na semana passada, no encerramento das filmagens, em Marabá, no Sul
do Pará.
— Uma pessoa falou para Pureza: “Os olhos do mundo vão te
ver”. Alguém fez esta profecia. Depois, ela olhou para mim e disse: “Os olhos
do mundo são o cinema” — conta a atriz, convencida do poder da sétima arte para
divulgar e combater os horrores do trabalho análogo à escravidão.
“Pureza”
é dirigido por Renato Barbieri, que assina o roteiro com o produtor Marcus
Ligocki Jr. Com fotografia de Felipe Reinheimer, as filmagens se estenderam por
um mês, até 15 de julho. A escolha de Marabá como locação foi em função da
logística e da infraestrutura da cidade. E, apesar de não ter passado por lá,
dona Pureza percorreu muitas fazendas do Sul do Pará. Na semana passada, foram
rodadas as cenas finais no Congresso Nacional, em Brasília. No elenco, além de
Dira, estão Matheus Abreu (o filho Abel) e Flávio Bauraqui (capataz Narciso). O
filme deverá ser lançado em festivais no ano que vem e, em 2020, vai para os
cinemas.
O momento
mais aguardado era a ida de Pureza, que mora em Bacabal, a 234 km de São Luís,
no Maranhão, ao set. Ao chegar à base da produção do filme, no Brejo do Meio,
aglomerado rural próximo a Marabá, ela recebeu os aplausos da equipe de
produção: aproximadamente 80 profissionais. Ali, era gravada a cena em que a
protagonista telefona de um orelhão atrás do paradeiro do filho. Em silêncio,
os moradores acompanhavam o desenrolar da encenação.
— Pureza
enfrentou muitos desafios, foram vários dias sem se alimentar. O filme é sobre
essa mulher em busca de seu filho e que acaba se deparando com o trabalho
escravo contemporâneo no campo. Uma situação ainda comum na região — diz Dira.
— Ainda tem
escravidão dentro dessas matas que só os olhos de Deus estão vendo — acredita
Pureza, que relembra os percalços pelos quais passou nessa busca, nos anos
1990. — Quando eu denunciava em Brasília, eles arrumaram uma equipe de não sei
quantos homens. Polícia Federal e Ministério do Trabalho entraram em sete
fazendas e não encontraram sequer um trabalhador escravizado. Tudo legalizado,
recebendo bons salários, todo mundo de carteira assinada. Uma grande mentira.
Dira em Bacabal
Dira Paes sendo tietada pelo fã bacabalense Jeffferson Sousa. |
O encontro
no set não foi o primeiro entre Dira e Pureza. A atriz já havia feito uma
visita prévia a ela em Bacabal. Relembre.
— Acho que
essa minha Pureza é o arquétipo da mãe. Não é necessariamente a Pureza Lopes
Loyola, que tem este nome maravilhoso que já diz muitas coisas — reflete Dira,
mãe de dois meninos, emocionada ao falar sobre o tema.
Renato
Barbieri, com 35 anos de trajetória pelo documentário, conta que “Pureza” é o
resultado de 11 anos de trabalho.
— Fui
apresentado à ideia em janeiro de 2007. Em dezembro daquele ano, a gente já
estava indo para Bacabal. Dona Pureza achou incrível a história de virar um
filme. Ela guardou registros em cassete, fotos, cartas escritas a três
presidentes: Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Tive
acesso àquele baú — conta Barbieri, lembrando que Pureza foi condecorada pela
Anti-Slavery International, mais antiga organização abolicionista do mundo.
Paralelamente, ele prepara o documentário “Servidão”, sobre a escravidão
contemporânea.
A história
do longa, porém, começa com Abel decidindo buscar emprego em garimpos na
Amazônia. Ele parte, mas não manda mais notícias.
— Pureza
ficou desconfiada de que ele pudesse ter caído em situação escravagista. No
percurso a pé que fez, ela acabou enfrentando duas onças. A gente achou melhor
nem colocar no filme porque ninguém ia acreditar — conta ele.
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