Dira Paes sendo tietada pelo fã bacabalense Jeffferson Sousa. |
A presença da atriz global Dira Paes não passou
despercebida no início da tarde desta quarta-feira (25) quando almoçava em uma
churrascaria em Bacabal/MA.
Tietada por alguns fãs, ela explicou as razões
que a trouxeram a cidade.
Dira interpretará Pureza Lopes Loiola no
filme que contará a saga da trabalhadora rural, moradora de Bacabal, que saiu
região afora em busca de um dos seus filhos que desapareceu em 1993, aos 19
anos.
Revirando as fazendas e matas do Maranhão e Pará, Pureza flagrou
repetidas situações de exploração brutal do trabalhador rural.
A história
dela já mereceu muitos prêmios, inclusive internacionais.
Em outubro do ano
passado, por exemplo, a colunista de O Globo, Dorrit Harazim, publicou ampla reportagem a esse respeito. Leia abaixo.
Faz
exatamente 20 anos que uma cabocla maranhense saiu de Bacabal, cidade-fornalha
na divisa com o Pará, e desembarcou no inverno de Londres com apenas uma sacola
de viagem comprada e equipada pela Pastoral da Terra de São Luis. A bagagem
continha produtos de higiene pessoal e roupa íntima. Um vestido de gala lhe
seria presenteado na capital inglesa.
Em 54 anos
de vida Pureza Lopes Loiola nunca havia saído da roça.
À sua espera
no aeroporto de Heathrow estava um intérprete encarregado de traduzir a
narrativa dessa brasileira que se alfabetizou aos 40 anos para ler a Bíblia e
tentar achar o filho sumido nas entranhas do trabalho escravo rural brasileiro.
O intérprete também ajudou a viajante a absorver aquele mundão novo para o qual
ela havia sido catapultada sem querer.
Dira Paes e Pureza Lopes em Bacabal. |
Indicada
pela Pastoral maranhense ao prêmio 1997 da Anti-Slavery International, entidade
pioneira fundada na Inglaterra em 1839 para combater o tráfego de escravos no
mundo, dona Pureza havia sido a vencedora. E para receber a homenagem foi
preciso viajar.
A primeira
perna até São Luís foi de ônibus. Dali embarcou num voo até Salvador, com troca
de avião em Fortaleza e escalas no Recife e em Natal. Por último, a travessia
noturna do Atlântico, rumo ao destino final desconhecido. Coisa de 32 horas
entre a sua casa de tijolo sem reboco no setor mais desassistido de Bacabal, e
um dos aeroportos mais pantagruélicos do mundo.
Como a
homenageada nunca tinha viajado de avião, e estava sozinha, a Pastoral e os anfitriões
ingleses trataram de informar as respectivas empresas aéreas sobre a presença a
bordo de passageira tão especial.
Preocupação
desnecessária. Evangélica de fé, dona Pureza tirou tudo de letra. Só se
inquietou no voo de retorno ao Brasil quando o comandante saiu da cabine, foi
trocar algumas gentilezas com a passageira e acabou comentando que também iria
tirar um cochilo. “Ué”, pensou a viajante, “ele não deveria continuar a pilotar
o avião?”
A entrega do
prêmio da Anti-Slavery — chamada mãe de todas as ONGs por ser a mais antiga do
mundo — é solene e envolve uma programação intensa. Além da cerimônia principal
no Westminster Central Hall, há uma recepção black-tie, beneficente, no
cultuado hotel Savoy, uma visita ao Parlamento, ao Foreign Office, uma dezena
de entrevistas e palestras em ONGs de outros países europeus — o roteiro
alemão, por exemplo, incluiu Göttingen, Bonn, Düsseldorf, Aachen, Colonia,
Heidelberg, Freiburg e Stuttgart.
A maratona
de quase um mês não intimidou a estreante em terra estrangeira. Mulher
inteligente e perceptiva, anotou tudo que lhe pareceu extraordinário para
contar na volta ao pessoal da Quadra L, Rua 3, na Vila São João. Em uma das
fitas que gravou, ouve-se um chiado contínuo por vários minutos. “Tá ouvindo?”,
perguntava a todos. “Isso aí é o trem passando embaixo do mar. Uma maravilha —
a gente embarca na Inglaterra e sai na França!”
Foi em 1993
que o caçula dos cinco filhos de dona Pureza saiu de casa em busca de emprego e
acabou “sumido”. Um irmão e dois primos da maranhense também já haviam sido
tragados em algum garimpo, fazenda ou carvoaria, sem deixar rastro.
Dona Pureza
então decidiu pôr o pé na estrada. Largou a carvoaria que lhe rendia uns
trocados e começou a percorrer os entrepostos de trabalhadores rurais desempregados.
Mostrava a foto do filho de 18 anos e ia perguntando se alguém tinha visto
aquele jovem com três dedos do pé esquerdo atrofiados.
Ao longo de
três anos peregrinou, seguindo pistas que davam em nada. Mas anotava tudo o que
via e ouvia — nomes de fazendeiros, locais suspeitos, tudo. De um sobrinho
conseguiu emprestado um gravador que escondia na roupa de evangélica. Passou a
gravar suas conversas com agenciadores de trabalho escravo, peões amedrontados,
fazendeiros que jamais suspeitariam daquela crente. Na Pastoral ela encontrou
incentivo para encaminhar denúncias a Brasília, a persistir. Escreveu dezenas
de cartas a autoridades federais.
Dos
presidentes Itamar Franco e, depois, Fernando Henrique Cardoso recebeu
exatamente a mesma resposta protocolar. Dos conterrâneos José e Roseana Sarney
não pronuncia o nome pois sequer responderam. À época, pelas contas da Pastoral
da Terra, o número de brasileiros que trabalhavam sob vigilância armada, sem
salário e cortados do mundo, em regime de escravidão, chegava a 26 mil.
“Lá em
Brasília não têm misericórdia. Quando sentam na cadeira, acham que são
semideuses. O Congresso passa o tempo todo brigando por dinheiro em vez de
olhar com mais piedade para o povo”.
Esta coluna
evoca aqui parte da viagem feita com dona Pureza duas décadas atrás, para
“Veja”, por ela continuar atual. O tamanho do retrocesso embutido na portaria
1.129/2017do atual governo é obsceno. Alterar as regras de combate ao trabalho
escravo, ou análogo ao trabalho escravo, num país em que as operações de
fiscalização estão em ponto morto (foram 189 uma década atrás, este ano
despencaram para 49), os recursos para a inspeção viraram farinata, e os
beneficiários de sempre deixarão de ser nomeados, se encaixa na avaliação da
cabocla respeitada em Londres: “Lá em
Brasília não têm misericórdia. Quando sentam na cadeira, acham que são
semideuses”.
EM TEMPO: O filho de Dona Pureza foi encontrado anos depois e o filme ainda não tem data de lançamento.