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CORONA

20 de fev. de 2015

Jeová, o Beiçola

Por Edgar Moreno*

Dificilmente alguém vai dizer que não o conhece. Dificilmente haverá um da terrinha que já não tenha topado com ele por aí pelo Restaurante do Povo, pelo Armazém Paraíba, pelo Banco do Brasil, pelo Posto São Camilo... Dificilmente o leitor não já tenha sido abordado por ele a pedir-lhe “dois real p’a interá...” Quando você não topa com ele, ele topa com você. Não há escapatória.

De segunda a segunda, de domingo a domingo, de festa em festa, de rua em rua, de noite ou de dia, de repente, ele surge do nada, todo pachola e preto, magro e esquelético, às vezes numa breve carreirinha, mas sempre com um banguelo sorriso, nunca triste. Ele é Jeová, o Beiçola, como ele próprio faz questão de dizer. Ele conhece todos: do pobre ao rico, do doutor ao leigo, do playboy ao mala, e não há nenhum lugar, por mais chique que seja, que Jeová não tenha acesso livre: da Blitz à Tia Preta, do Brahmeiros ao Caipirinha, do Shopping Avenida à Bolívia... Ele é ele, figura folclórica já carimbada por seu jeito, sua voz pueril, sua amizade e peripécias.

Ele pede, fuma, usa... Pede de novo, corre à Trizidela. No outro dia a mesma ladainha. E não há polícia que o barre, que o flagre. É provável que todos os civis e militares o conheçam e o estimem, que todos os ébrios e boêmios tenham-lhe dado algum troco, é até famoso nos vídeos do You Tube, e num vídeo já o vi chorar quando achou 50 reais; enfim, é uma afiguração concreta e boa do submundo da Terra das Bacabas... 

E aqui lembro que já me questionaram porque os poetas e escritores se “inspiram” em “coisas” como os loucos, drogados e mazelas da cidade ao invés de se importarem com a juventude “top” e belezas da city. O fato já teve de chegar ao ponto da exigência e do narcisismo: “Por que não fazer uma poesia pra mim? Eu mereço.” Sinceramente eu não sei responder e talvez nem convencesse o leitor se tentar fazê-lo.

Mas digo que a literatura tem dessas coisas. Vai surgindo, tomando corpo e de repente se realiza. Mas também, nada vem do nada. Tudo há de ser fecundado. E esta crônica o foi, naturalmente, pelo próprio Jeová. Como assim? Ele chegou ali pelo “Fim da Tarde”, restaurante da Maria, ao pé da ponte metálica. Como se sabe, a cerquinha verde-amarela é um prático aviso de que ali mala não deve entrar, mas Jeová não se vê como um mala. Em sua própria lei, tem passagem livre, entra e sai, canta e disfarça a pedir os fregueses. Sai e volta quando quer.

Naquela tarde eu almoçava ali com minha família. Aguardávamos famintos. Ele foi chegando e de longe foi logo se derretendo de simpatia ao meu filho:

—Ramiiiiro, tu tá grandão, muleque. Eu te vi desse tamainho, brother! Olávia, garota, taí só no “selfie”, hein! —E se achegando mais próximo de mim, foi dizendo meio baixo:

—‘fessor’, eu encabulado com o sinhô, viu? Nunca mais me botou numa poesia sua. Ri disso. Ele se referia à crônica “No restaurante do povo”, publicada meses atrás e de cujo jornal ele me fez dar-lhe um exemplar, esbanjando enorme satisfação aos seus afetos. Mas logo ele ataca baixinho, com uma breve olhadela aos donos do bar:

—‘fessor, dá aí dois real p’a mim interar...

—Tem trocado não, Jeová. Da próxima vez.

E ele jogando três moedas de um real sobre a mesa:

—Toma aí o troco. Dá aí cinco conto.

Sorrimos. Ele também. Marinalva deu-lhe os cinco reais e recolheu o troco. Num instante, o preto evaporou-se como um gás. Carreirinha... Carreirinha... Voz largada... Sorriso banguelo, todo feliz...

—Isso dá uma crônica — disse eu ainda vendo o Beiçola ir-se rua afora...

*Heterônimo de Costa Filho, da Academia Bacabalense de Letras. (Crônica publicada na edição impressa do jornal O Mearim, jan/2015).