Por Edgar Moreno*
Dificilmente alguém vai dizer que não
o conhece. Dificilmente haverá um da terrinha que já não tenha topado com ele
por aí pelo Restaurante do Povo, pelo Armazém Paraíba, pelo Banco do Brasil,
pelo Posto São Camilo... Dificilmente o leitor não já tenha sido abordado por
ele a pedir-lhe “dois real p’a interá...” Quando você não topa com ele, ele topa
com você. Não há escapatória.
De segunda a segunda, de domingo a
domingo, de festa em festa, de rua em rua, de noite ou de dia, de repente, ele
surge do nada, todo pachola e preto, magro e esquelético, às vezes numa breve
carreirinha, mas sempre com um banguelo sorriso, nunca triste. Ele é Jeová, o
Beiçola, como ele próprio faz questão de dizer. Ele conhece todos: do pobre ao
rico, do doutor ao leigo, do playboy ao mala, e não há nenhum lugar, por mais
chique que seja, que Jeová não tenha acesso livre: da Blitz à Tia Preta, do
Brahmeiros ao Caipirinha, do Shopping Avenida à Bolívia... Ele é ele, figura
folclórica já carimbada por seu jeito, sua voz pueril, sua amizade e
peripécias.
Ele pede, fuma, usa... Pede de novo,
corre à Trizidela. No outro dia a mesma ladainha. E não há polícia que o barre,
que o flagre. É provável que todos os civis e militares o conheçam e o estimem,
que todos os ébrios e boêmios tenham-lhe dado algum troco, é até famoso nos
vídeos do You Tube, e num vídeo já o vi chorar quando achou 50 reais; enfim, é
uma afiguração concreta e boa do submundo da Terra das Bacabas...
E aqui lembro que já me questionaram
porque os poetas e escritores se “inspiram” em “coisas” como os loucos,
drogados e mazelas da cidade ao invés de se importarem com a juventude “top” e
belezas da city. O fato já teve de chegar ao ponto da exigência e do
narcisismo: “Por que não fazer uma poesia pra mim? Eu mereço.” Sinceramente eu
não sei responder e talvez nem convencesse o leitor se tentar fazê-lo.
Mas digo
que a literatura tem dessas coisas. Vai surgindo, tomando corpo e de repente se
realiza. Mas também, nada vem do nada. Tudo há de ser fecundado. E esta crônica
o foi, naturalmente, pelo próprio Jeová. Como assim? Ele chegou ali pelo “Fim
da Tarde”, restaurante da Maria, ao pé da ponte metálica. Como se sabe, a
cerquinha verde-amarela é um prático aviso de que ali mala não deve entrar, mas
Jeová não se vê como um mala. Em sua própria lei, tem passagem livre, entra e
sai, canta e disfarça a pedir os fregueses. Sai e volta quando quer.
Naquela tarde eu almoçava ali com
minha família. Aguardávamos famintos. Ele foi chegando e de longe foi logo se
derretendo de simpatia ao meu filho:
—Ramiiiiro, tu tá grandão, muleque. Eu te vi desse tamainho, brother! Olávia, garota, taí só no “selfie”, hein! —E se
achegando mais próximo de mim, foi dizendo meio baixo:
—‘fessor’, eu tô encabulado com o sinhô, viu? Nunca mais me botou numa poesia sua. Ri disso. Ele se
referia à crônica “No restaurante do povo”, publicada meses atrás e de cujo
jornal ele me fez dar-lhe um exemplar, esbanjando enorme satisfação aos seus
afetos. Mas logo ele ataca baixinho, com uma breve olhadela aos donos do bar:
—‘fessor, dá aí dois real
p’a mim interar...
—Tem trocado não, Jeová. Da próxima
vez.
E ele jogando três moedas de um real sobre a mesa:
—Toma aí o troco. Dá aí cinco conto.
Sorrimos. Ele também. Marinalva
deu-lhe os cinco reais e recolheu o troco. Num instante, o preto
evaporou-se como um gás. Carreirinha... Carreirinha... Voz largada... Sorriso
banguelo, todo feliz...
—Isso dá uma crônica — disse eu ainda
vendo o Beiçola ir-se rua afora...
*Heterônimo de Costa Filho, da Academia Bacabalense de Letras. (Crônica publicada na edição impressa do jornal O Mearim, jan/2015).
*Heterônimo de Costa Filho, da Academia Bacabalense de Letras. (Crônica publicada na edição impressa do jornal O Mearim, jan/2015).